Deus não gosta de pessoas gordas
A culpabilização de quem ousa desobedecer: pessoas gordas não vão para o céu
Eu tinha quatro anos quando descobri que era gorda. Foi na escolinha e, até então, não sabia que habitar o meu próprio corpo poderia ser algo ruim. Naquele dia, fui impedida de brincar. Foi a primeira vez que me lembro de ter uma atividade de prazer bloqueada por viver no meu próprio corpo. Naquele dia, perguntei para o Papai do Céu por que eu estava sendo punida, já que não lembrava do que havia feito de tão grave para não poder brincar com outras crianças. E essa foi só a primeira vez. Expulsa de qualquer paraíso antes mesmo de colocar os pés em algum/algo do tipo. Sem ter, sequer, o privilégio da recusa dada à serpente e/ou à maçã.
pra ler ouvindo 📚
Recusei, muitas vezes, doces, pães e bolos, ainda criança, já que, aparentemente, eram eles que me tornavam uma criança gorda. E ser uma criança gorda era sinônimo de ser excluída, maltratada. Era ter o corpo público, com fila de garotos para abaixar e olhar minha calcinha por baixo do uniforme escolar, já que eu não conseguia fechar as pernas direito. Era não poder comer como qualquer outra criança comeria.
E eu juro, eu não entendia qual pecado eu havia cometido para ser castigada dessa forma: não poder brincar e não poder comer coisas que eu gostava. Mas, entendia que Deus gostava mais das crianças magras. As que eu me relacionava podiam comer doces sem olhares acusatórios e com aval de algum adulto próximo, que sempre dizia: ah, mas ela é magrinha, pode comer. Você é gordinha, tem que se cuidar. E é doido porque nessas horas eu me sentia bastante desamparada e gostaria de alguém que cuidasse de mim.
Aos poucos, percebi que pessoas gordas não vão para o céu. Escoradas no pecado da gula, que às vezes nem é gula, mas genética - a famosa "tendência" - ou questões hormonais, elas merecem ser punidas com o fogo eterno no mármore do inferno.
São punidas também com a bestialização dos próprios corpos - e, como toda, ou quase toda, besta, devem ser exterminadas e expostas, com a carcaça, ao lado de quem as matou/caçou, extinguiu da terra tamanha aberração.
Pessoas gordas não frequentam o paraíso. São punidas com a desumanização e corpos não humanos não são bem-vindos nas casas de Deus, este, com letras maiúsculas e fazendo acepção de quem não se encaixa no padrão.
Acho curioso imaginar Deus, sentado no seu trono divinal, pensando em punir os corpos gordos porque estes fugiram à regra da genética eugênica imposta e são diferentes. Imagino que ele se divirta elaborando as mais sádicas formas de tortura que são possíveis a um ser humano: dispositivos que trancam a boca impedindo a entrada de comidas sólidas, cirurgias dolorosas e de longa recuperação, dietas extenuantes, injeções que provocam enjoos, vômitos, distúrbios e magreza. Há sempre um preço altíssimo a ser pago pelo pecado de ter um corpo diferente do padrão e do imaginário. Há sempre um corpo a ser punido, judiado, sacrificado em nome da moral, dos bons costumes e, claro, da magreza. Chamam isso de saúde. Eu não poderia nomear melhor tamanha doença.
Sem querer ofender religião x ou y, mas é estarrecedor pensar que as pessoas acreditem que um tipo de corpo é um pecado e que quem o habita não merece o "descanso eterno" ou o "paraíso", ou o "céu" ou seja lá como for que o cristianismo goste de denominar o local sagrado para onde vão os que não têm pecados. Eu tenho muitos. Alguns podem estar relacionados com o corpo. Muitos eu paguei ainda na infância, me questionando por que o papai do céu estava me punindo por eu ser uma criança gorda e não poder brincar, como as outras.
Gatilho pouco é bobagem. Em 2023, o The Intercept publicou a reportagem "Bispos da Universal obrigam pastores a emagrecer e vetam casamentos interraciais". Imagina como é que fica a mente do palhaço - e da liderança da igreja tendo que decorar versículo e contar calorias. Além de ser obrigado a ser racista. Aparentemente, vale tudo pela vaguinha - ou terreninho - no céu. Desde que se caiba dentro, é claro.
Certa vez, ouvi dizer que a alma pesaria 21 gramas. Com essa leveza - dizem que foi cientificamente testada - seria possível caber no céu e nos imaginários, não? Aparentemente, não é o que quem frequenta instituições neopentescotais e cristãs se depara. Há fiscalização da balança, do prato e da fé.
O buraco, claro, é mais embaixo. Em 2011, foi notícia por aqui algumas igrejas no Mississipi, nos EUA, que baniram o frango frito das cantinas em nome da saúde, com frases como "nosso corpo não é nosso, é um presente de Deus e deveríamos fazer um trabalho melhor com ele". A ideia, como a chamada da notícia traz, era "combater a obesidade através da fé".
O projeto, claro, chegou no Brasil. Ao longo dos últimos anos, pastoras famosas na internet e nos púlpitos ganharam destaque há algum tempo após afirmarem, categoricamente, que Deus não gosta de pessoas gordas e associaram os corpos gordos à preguiça, gula, entre o outros pecados capitais. A tristeza é tanta que algumas se valeram, inclusive, de passagens bíblicas para justificar o preconceito e a opressão. Dá para ler mais aqui.
E não é só. Algumas delas diziam, inclusive, que pessoas gordas não iriam para o céu. Daqui, imagino São Pedro na entrada do céu, barrando quem tem o IMC acima de x, por ser considerado obesidade mórbida e explicando: meu filho, seu corpo é um pecado. Volte e fale com o diabo.
Para mim, é criminoso que algumas pessoas preguem que a prática do jejum com fins religiosos pode ser benéfica para a perda de peso. Aliás, em qualquer circunstância, óbvio!
É também dentro das igrejas que o patriarcado se fortalece e, não bastasse toda opressão, há as constantes falas culpabilizando as mulheres pelos corpos gordos e/ou "fora de forma", o que, em tese, as impediria de encontrar um "varão valoroso". Quando olho por esta perspectiva, não me espanta que minha versão criança se culpasse pelo corpo que tinha e questionasse o amor de Deus diante os possíveis pecados que alguém cometeria aos quatro anos.
Portanto, não me parece exagero dizer que não é Deus que não gosta das pessoas gordas, mas que o cristianismo não gosta. E aqui, deixo o espaço para dizerem: "ah, mas eu amo o pecador e não o pecado" e destrincharem falas sobre como reparar o "mal" que a gula infringiu sobre corpos gordos e explanar manuais sobre como ser um bom cristão - e como isso passa longe do corpo gordo, já que este é considerado um corpo pagão e cheio de pecados.
É fato que na igreja, a abstinência é considerada a cura para muitos males, dentre eles, a gula. Logo, o corpo gordo seria um corpo que não jejua o suficiente. Uma prova viva do pecado. Do corpo que não se sacrifica. Alguma semelhança com os ambientes escolares, de trabalho, de academia, da vida cotidiana? Pois é. A atualização do cristianismo e do inferno está logo ali, bem na nossa frente. Nas nossas costas. Ao nosso lado. Somos nós mesmos, julgando quem não foi capaz de se torturar o suficiente por um corpo magro. Que seja torturado agora, pelos nossos olhares, pelas nossas mãos que apedrejam as cruzes pesadas demais dos corpos gordos pra carregar, pelo fogo eterno infernal.
O tema já foi, inclusive, título do documentário "Gordos não vão para o céu", da diretora santista Marina Mussi, que debate o esforço que pessoas gordas precisam fazer para serem aceitas em uma sociedade regida por padrões rígidos de aparência.
Assista ao trailer do documentário Gordos não vão para o céu:
Para mim, foi só depois dos 30 anos - e muitos de divã - que eu entendi que a culpa por ser uma criança - adolescente e adulta gorda - não era minha e que o inferno é uma invenção cristã e colonial. Perdi o medo. O medo de ser gorda. De comer o que desejo. O medo do desejo. De brincar. Só não aprendi ainda a ser amada. Talvez não aprenda nunca, porque, por mais que eu me ame, Deus agora se veste de homens que fetichizam meu corpo, de mulheres que fetichizam meu intelecto, de pessoas que me querem por perto apenas para lembrar que somos diferentes - e isso as faz se sentir superiores, de pastores e pastoras que dizem ser pecado ser quem eu sou. Não acredito mais no céu, mas sei que o inferno é habitar um corpo que desobedece. Hoje, eu oro para que vocês sejam perdoados. Ou não.
📚📢 fora do hype
Baixo Paraíso, de Isabella Andrade
Como jornalista e mulher gorda, poucas vezes me deparei com uma obra que dialoga tão profundamente com a experiência de viver em um corpo que foge aos padrões quanto "Baixo Paraíso", de Isabella Andrade. Este livro, publicado pela Diadorim, me marcou pelo corpo, que está inteiramente entregue à escrita. A história de Marília, narrada desde a infância até a vida adulta, é um mergulho intenso em uma vida permeada por sensações, desejos, medos e histórias que muitas vezes não encontram espaço na literatura tradicional.
"Baixo Paraíso" nos transporta para o coração do Centro-Oeste brasileiro, um cenário raramente celebrado na literatura. A cidade fictícia de Baixo Paraíso, seca, poeirenta e envolta por cachoeiras que atraem mochileiros e turistas de sandálias de couro, é o palco perfeito para a complexa trajetória de Marília. Cada frase do livro é cuidadosamente posicionada, com uma exatidão que torna a leitura incrivelmente coesa e fluída. Andrade não desperdiça palavras; cada sentença é um convite para sentir e vivenciar as profundezas do que é ser Marília.
A relação de Marília com seu corpo, descrito com uma honestidade quase dolorosa, é central na narrativa. Desde a infância até a tumultuada adolescência, quando se empanturra para mascarar o desejo por Gabriela, a narrativa nos conduz pelos altos e baixos de uma existência em desacordo com as expectativas externas. O uso de remédios tarja preta, prescritos de maneira inconfessável, é uma dolorosa reflexão sobre as pressões sociais e a busca desesperada por aceitação.
Marília se debate entre o prazer e a crueldade, entre os segredos e as intermitências do amor, enquanto o mundo aplaude suas dolorosas transformações. É um retrato visceral de como alguns paraísos, embora tortos e perdidos, podem ser imensamente significativos. "Baixo Paraíso" é, acima de tudo, uma celebração da resistência e da busca por identidade em um mundo que frequentemente marginaliza corpos como o de Marília - e o meu.
Isabella Andrade oferece uma incursão sincera e penetrante no interior de Goiás e, por extensão, na alma de todos que já se sentiram deslocados em seus próprios corpos. Uma leitura obrigatória para quem busca entender as nuances das experiências corporais fora dos padrões e mergulhar em uma história que é tão sensorial quanto comovente.
🎧 nos falantes
Eita que você chegou até aqui! Então bora de indicação sonora.
“Eu sou seu plano que deu errado”. Com essa frase ecoando na minha vida que dou play na canção “Preta Semente”, da artista Luz Ribeiro. Conhecida pelas performances poéticas e no spoken word, Luz Ribeiro traz uma poderosa reflexão na faixa que celebra a ancestralidade e a resistência. Com produção musical de Felipe Parra, a música destaca a luta e a sobrevivência dos descendentes africanos através de versos contundentes e emotivos. A letra, rica em referências históricas e culturais, faz homenagem a figuras icônicas como Maya Angelou e Martin Luther King Jr., enquanto a produção visual, dirigida por Bruna Carolli, complementa a mensagem com uma estética envolvente. "Preta Semente" é um hino de resiliência e identidade que não deve ser perdido.
Por hoje é só! Essas são minhas urgências da semana e eu espero que vocês tenham curtido! Por aqui, vou testando os melhores dias para enviar, para ler, etc.
Vai me contando também!