Esse ano eu não vou à Flip
Meu luto, a falta de trabalhos remunerados e a exaustão vão me manter em casa
pra ler ouvindo 📚
Demorei a decidir. Tenho ido, anualmente, com destaque para momentos intensos, bons momentos, conhecer meu mais recente analista, amores que vão e vem, noites de balada, cerveja na praia, samba na sexta-feira, encontros inesperados, encontros marcados e que nas labirínticas ruas do centro histórico jamais se materializam, mesas lotadas, mesas que sequer consegui chegar, festas que perdi, festas que fui parar sem querer, passeio de barco no domingo, amigos reunidos todos num mesmo lugar, a sensação de que algo muito importante para o pensamento - e futuro - do país está acontecendo ali, conversas à toa entre a compra de uma dose de gabriela e um milho cozido na madrugada, tombos históricos nas ruas de pedra, encontros pelos quais eu passo o ano todo ansiando, jantares em restaurantes asiáticos chiques, em cantinas italianas, no meio-fio, poetas em cada esquina, uns famosos por aí, ser reconhecida pela voz ouvida no podcast #rabiscos, noites de muito nervoso pré-mesas importantes, a mediação de uma das mais importantes mesas da história do festival: Silvia Federici na Flipei e a dolorosa decisão: neste ano não vou.
Não é fácil para alguém que, como eu, sofre de ansiedade e, por conseguinte, tem FOMO (fear of missing out). Nem começou ainda e eu já estou sofrendo com as imagens paratienses na minha timeline, com a saudade da Brisa, na casa de quem me hospedo na Ilha das Cobras e posso experimentar a verdadeira vida na cidade, comendo pastel de banquinha altas horas da madrugada e entendendo como se dão as cartas na cidade que é cartão postal. Decidir não ir me custa muito.
Mas ir me custaria mais, não apenas em reais, mas em registro simbólico. Estou num processo de luto - perdi meu pai há dois meses - e, encontros com muitas pessoas ainda me disparam gatilhos, ansiedade e eu não consigo ficar totalmente de boas. Minha vida prática também sofreu alterações e eu preciso repensar e redesenhar uma agenda para conseguir viajar e passar tantos dias longe de casa. Além de precisar de fôlego para ter o carisma necessário para os encontros aleatórios que acontecem pela cidade.
Além disso, pela primeira vez em muitos anos, não fechei nenhum trabalho remunerado no festival. Confesso que não fui atrás, dado o luto e a bagunça que isso causa na vida. Mas, viajar mais de 600 km apenas para mostrar minha cara bonita não é uma opção, sobretudo nesse período que tem sido doloroso e sofrido. Isso, inclusive, me faz pensar sobre meu lugar na cena da literatura e na forma como venho investido ao longo dos anos e como meus lutos e meu burnout têm me mantido num limbo difícil de sair. As amizades duram apenas uns dias, dali em diante, sou só eu, minha saudade e o sentimento sufocante que só quem já perdeu alguém que amava muito sabe como é. Não tem festival no mundo que cure.
mesa com Silvia Federici, Verónica Gago e Luci Cavallero Mediação Jéssica Balbino.
Em tempo, este ano não teremos a Flipei (Festa Pirata das Editoras Independentes) no areal do pontal, o que já rouba um tanto da brisa de ir à Flip, haja vista que a programação paralela e a possibilidade de festas abertas ao público e que adentram a madrugada foi extinta graças à própria organização da Flip oficial, que, temendo o crescimento da festa e a migração de público, bem como o posicionamento político, investiu pesado na repressão no último ano, fazendo com que a âncora fosse recolhida de Paraty e jogada em São Paulo. Fiz, inclusive, parte da curadoria deste ano e só não consegui participar das mesas que tinha previsto porque meu pai morreu durante o evento.
O luto é uma força que vai nos devorando aos poucos.
Quando eu menos me dou conta, estou consumida. Além, claro, da exaustão e de viver no Brasil de 2024 e crise climática, doenças muitas, crise política e não há um segundo apenas de paz, sequer para pensar em estar num festival literário. Infelizmente, recusei outros este ano. E ano passado também. E anseio pelo dia que estarei minimamente em pé de novo - inteira é impossível, já sei - para conseguir me programar com a alegria que vi alguns amigues fazerem esse ano.
Anseio também pelo dia em que eu não vou precisar ser, como bem cunhou o termo, Marcus Faustini, uma intrusa social. Anseio pelo dia em que serei convidada e não me oferecerei para mediar uma mesa, compor uma programação, fazer parte da festa para a qual não me convidaram (sim, sou brega a ponto de citar Cazuza).
O calor exagerado que faz em Paraty nesta época do ano, a possibilidade de chuvas e a falta de energia elétrica que provocaram o caos ano passado, somada à minha absoluta falta de bateria social sacramentaram a decisão de ficar em casa, trabalhando em outros projetos. Queria poder dizer: sou superior, estou melhor do quem está lá. Não é verdade. Adoraria ter forças para estar. Mas, estou num momento que simplesmente não consigo. E aceitar isso, sem esgarçar meu limite pessoal, é uma decisão bem importante, sobretudo pra mim, que sempre digo sim a tudo e todes, sem pensar nas consequências disso para o meu corpo e, sobretudo, para minha mente. Meu analista concordaria comigo: talvez tenha sido uma boa decisão. Embora, claro, eu esteja sim, com inveja de quem está por lá. Do sorvete com café que só tem num estabelecimento específico de Paraty, do tapete voador do Istambul, que só existe lá também, da atmosfera da cidade que só ocorre quando está acontecendo mesmo a Flip.
Após uma Flip em 2023 marcada pela censura e pelo desejo de retorno às origens da festa (para as elites, sem que pautas progressistas avancem o campo), temos uma Flip que deve acontecer sob calor forte e alguma previsão de chuva, que homenageia João do Rio e teve curadoria da Ana Lima Cecilio.
Nesta quarta-feira (9), o jornal traz:
Este ano, a independente Elefante emplacou três autores na programação principal, comprovando ainda mais a vocação desta edição: além do palestino Atef Abu Saif, ela tem o americano Danny Caine, autor de “Como resistir à Amazon e por quê”, e a espanhola Brigitte Vasallo, que discute os desafios dos relacionamentos poliamorosos. É a primeira vez da editora na Flip. Desde 2018, a Elefante participava da Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), que ocorria paralelamente à Flip em Paraty e desta vez aconteceu em São Paulo, em agosto.
— Gosto de pensar que essa programação antenada, interessada nos debates contemporâneos, é influência da Flipei, que foi capaz de juntar editoras de não ficção e chamar o público para debater cultura, comportamento e política. No ano passado, com a (feminista italiana) Silvia Federici, a Flipei chegou a fazer mais barulho que a Flip — opina o editor Tadeu Breda.
Talvez a Flip desse ano seja sobre isso: lembrar quem domina a cidade e os festivais literários no Brasil capitalista. No fundo, bem lá no fundo, não tem espaço para mim este ano. E, como alguém há anos em análise, estou exercitando não forçar caber onde não há condições.
Dito isso tudo - desabafo feito - espero que aproveitem os dias em Paraty, que divirtam-se, que apreciem os bate-papos, que os encontros sejam mágicos como foram até agora comigo. Que seja uma Flip linda. Hidratem-se, usem protetor solar, calçados e roupas confortáveis. Tirem um dia para ir à praia ou passear de barco, vale a pena. Também vale a pena curtir o final de tarde no pontal, tomando uma cerveja gelada e olhando o mar e a mata atlântica, com chance de ainda ir aproveitar as mesas.
Do lado de lá da ponte, no areal, as comidas são mais em conta e deliciosas. Fora do centro histórico também há opções mais em conta. Indico, sempre, o Istambul, o Pupus e a hamburgueria Van Gogh. Visitem as casas, sobretudo as que não têm a indicação da Flip na porta e seguramente estão dando um ralo para estar ali com uma programação paralela que quase sempre é sensacional.
Para encerrar, indico a leitura da newsletter do amigo Rodrigo Casarin, que dá dicas do modo de usar.
MEU CORPO, MINHA BIOGRAFIA
NO SESC CAMPINAS
Apesar de não estar em Paraty, este mês estarei no Sesc Campinas com um curso de escrita criativa: meu corpo, minha biografia. De 18 a 26/10, fica esse convite à reflexão sobre a relação entre corpo, escrita e memória, explorando como as histórias pessoais são intrinsecamente ligadas à corporeidade. Por meio de atividades práticas e interativas, os participantes serão incentivados a investigar suas próprias narrativas corporais, a fim de entender como essas histórias podem ser transformadas em literatura.
Para se inscrever, é só clicar aqui
cabe dengo em corpo gordo?
o sucesso recente de um seriado em que uma protagonista mulher gorda é assediadora sexual/stalker renovou os ânimos de uma reflexão não tão recente sobre aspectos bastante arcaicos: será possível existir representatividade positiva, afirmada, profunda do corpo gordo e sua subjetividade nas produções audiovisuais, numa sociedade marcada pela gordofobia e sua incidência nas patologizações físicas e psíquicas de nossas existências gordas?
como seriados recentes têm refletido ou refutado a onda “body-positiveness” na construção e retratação de personagens gordas, especialmente em produções que trazem também o romance como tema central?
é possível desorbitar a polarização entre, de um lado, imagens ridicularizantes (a gorda engraçada, debochada) e de outro imagens escatológicas (a gorda nojenta, desprezível)?
y quais outros estereótipos hegemônicos de depreciação, patologização, desumanização de gordes têm sido acionados na construção das personagens de seriados, novelas, filmes contemporâneos?
conseguimos sair do velho papel da gorda-melhor-amiga?
e a interseccionalização com outros marcadores identitários de vulnerabilização – como classe, sexualidade, raça/etnia, identidades de sexo/gênero contra-hegemonias –, traz que tipos de complexidade/s ao debate?
existe personagem gorda feliz e amada na tela? ou não existe? ou quase existe? é possível ao corpo gordo amar, nos ecrãs que subrepticiamente educam tanto sobre o amor por outres e também por nós mesmes?
existem imagens em movimento mostrando se pode o corpo gordo ser amado?
IDEALIZAÇÃO E FACILITAÇÃO:
Jéssica Balbino é cria da rua é do hip-hop, jornalista, mestre em comunicação pela Unicamp, colunista do Estado de Minas e produtora de conteúdo para a revista TPM. Escreve sobre corpo, diversidade, literatura e periferia. É autora dos livros "Gasolina & Fósforo" e "Traficando Conhecimento". Atua também como curadora de literatura, corpos, conhecimento e conteúdo. Viciada em café, tem medo de estátuas e acredita que as narrativas em disputa podem transformar o mundo. Nas horas "vagas", é psicanalista.
tatiana nascimento é de brasília, mãe da Irê, NB. gosta de novela, de cantar, de escrever poemas. sonha bastante, até acordada. tem um bocado de livros publicados, foi finalista do jabuti de poesia 2022, publicou + de 60 títulos de autoria LGBT/negra pela padê (que não é cocaína) editorial. criou o conceito "cuírlombismo literário" pra pesquisar literatura negra lgbtqi+.
INFORMAÇÕES:
Datas: 20/10, das 10h às 13h
Valores conscientes, você paga o quanto pode no momento!
Opção 01 - Mínimo: R$30
Opção 02 - Intermediario: R$50
Opção 03 - Ideal: R$70
Opção 04 - Fortaleceu demais: R$90
BOLSA INTEGRAL: se você quer fazer este curso mas não dispõe de recursos financeiros no momento, mande um e-mail para oi@bravasp.com.br contando um pouquinho de você e como esse conteúdo pode ser importante <3
Curso online e ao vivo, via plataforma Zoom
Todas as aulas são gravadas e disponibilizadas para quem estiver inscrite (vídeo disponível no drive por um mês após a realização do curso)
Emissão de certificado de participação para quem assistir às aulas ao vivo.
inscreva-se aqui
🎧 nos falantes
Eita que você chegou até aqui! Então bora de indicação sonora. Fiquem com o ep Colmeia, da Mel Duarte, que segue o projeto de unir spoken word à música. Está sensacional, com ritmos como MPB, pagodão baiano, trap e uma caneta pesadíssima. Aperta o play e se joga!
Ás árvores, de Percival Everett
Perturbador e de tirar o sono, o livro “As árvores”, de Percival Everett é um horror racial e irônico lançado recentemente pela Todavia (uma das minhas editoras preferidas, cês já sabem, né?)
O autor é autor do livro que inspirou o filme Ficção Americana (vencedor do Oscar 2024 e disponível na Amazon Prime Video) e é um filme incrível.
O romance trata de uma vingança histórica, escrita com muita ironia, bom humor e horror. Na trama, o corpo de um homem branco surge morto em casa, com os testículos arrancados, enforcado com arame farpado, ao lado de um corpo de um homem negro, vestido com roupas de outra época, segurando os testículos dele. Os corpos são removidos para o IML e o corpo do homem negro some, para ressurgir, muito breve, em outra cena de crime idêntica à primeira. E mais uma vez, os corpos são levados ao IML e o corpo do homem negro, novamente, some e reaparece em outra cena de morte. Tudo isso na pequena cidade de Money, no Mississipi, para onde dois detetives negros são enviados a fim de investir o que está ocorrendo.
O que estaria por trás destes crimes? Neste ponto se dá a aparição de um elemento real, que é o Emett Till, que foi morto pela lei Jim Crown, em 1955, no Mississipi, em razão do racismo. Carolyn Bryant, autora da denúncia que vitimou o jovem, também é personagem do livro. Saiba mais sobre o caso real aqui.
Um acervo dos casos de linchamento de pessoas negras nos EUA e a multiplicação dos casos, chegando a Chicago, com corpos asiáticos e indígenas sempre ao lado dos corpos brancos também está presente no livro, em uma atmosfera que nos lembra um pouco da série Atlanta e também um pouco do Jordan Peele.
Para mim, foi uma leitura intrigante e deliciosa. Queria que mais pessoas lessem, para que pudéssemos conversar sobre essa vingança racial a partir do insólito.
Mama Z é a personagem mais sensacional do livro. Mas, pra conhecê-la será preciso ler. Se já tiverem lido, me contem o que acharam?
Jéssica, sinta-se abraçada!
O luto é um negócio impossível de descrever. No ano passado, tentei um adoção e não deu certo. Era um adolescente, com planos próprios que não incluíam adoção, mesmo que estivesse no sistema adotivo. E quando esse filho que foi e nunca foi ao mesmo vai embora, não podemos mais ter notícias. Esse mês faz um ano que ele foi, e só agora parece que a vida está voltando a ter graça. Eu tive câncer ano passado tbm (descobri menos de um mês depois de conhecer meu menino). Eu enfentaria 5 cânceres (esse é o plural correto?) pra que as coisas tivessem dado certo com meu menino. Tudo isso pra dizer: demora mais do que a gente gostaria, mas existe vida após o luto. Continue. ♥️