pra ler ouvindo 📚
tenho estado às voltas com essa pergunta: por qual palavra meu corpo é obcecado? faz alguns anos que ele está exausto e de luto. talvez seja pela morte. pela possibilidade da vida? pelo encantamento? sempre peço para que seja encruzilhada, não só porque a sonoridade é bonita, mas porque ela é uma bifurcação de caminhos. taí outra palavra que acho bonita: bifurcação. mas, sempre que digo dela, lembro do meu pai e, consequentemente, que ele morreu este ano. tentei fazer uma lista de lutos num caderninho que arrumei para fazer listas. me perdi no meio, porque meu óculos ficou embaçado. deveria por a culpa no TDAH, mas sou durona demais para não me fazer de forte e fingir que minhas lamúrias são desimportantes. a brisa fez uma lista das coisas que eu fiz esse ano e nenhuma delas me pareceu tão imensa quando esse afogamento no mar de histórias que atravessam meu corpo e agora contam apenas comigo para se manterem vivas: as memórias.
domingo passado enterrei meu gato, que morreu. e dia desses, mataram, a pauladas, o noia que ficava aqui pela rua. me dei conta de que ninguém - exceto minha mãe - que fez parte da minha infância permanece vivo. isso inclui uma amiga que morreu aos sete anos e eu tinha nove. uma psicóloga leu meu livro, o gasolina & fósforo, e disse que há um luto crônico. eu pensei, enquanto escrevia, que tinha um incêndio próximo.
talvez o luto sejam essas ausências todas que me queimam a existência. tenho um texto sobre isso no livro. talvez seja o meu preferido, mas ele não hitou tanto quanto o “mulher porca” e olha que fala de dor também.
será que patologizar a dor de tantas perdas é melhor caminho? sou histérica e seja lá como for, na última sexta-feira eu tive crise de ansiedade e meti um Rivotril pra dentro às 16h. não consegui encontrar minhas amigas, não consegui me divertir fora de casa e do meu mundo que é marcado por isso: perdas.
me sinto à deriva e cada dia mais sozinha, mas tenho medo de falar sobre isso e receber consolos vagos como: a vida é assim mesmo, você precisa se divertir. me sinto exausta de tentar me divertir. de tentar. de seguir. de sobrar. sobreviver dá muito trabalho. às vezes eu só queria viver, mas preciso pagar boletos, pensar no inventário, no testamento, organizar os papéis, rever fotos antigas, encontrar um jeito de imprimir meu próprio Instagram, escrever compulsivamente aquilo que me queima viva. compulsivamente.
não, eu não sou compulsiva por comida. mas, por livros, sim. por literatura. aulas online. cursos e mais cursos que se acumulam salvos, sem que eu consiga assistí-los a tempo - ou mesmo de forma assíncrona, porque estou sempre ocupada demais tentando sobreviver, pagar as contas, cobrar quem não me paga nem, literalmente, com decreto, tentando não me desmanchar diante das ausências que me quebram inteira num dia de semana às 15h, enquanto eu deveria estar finalizando um texto ou apurando algo, ou enviando releases, ou prospectando clientes, ou lendo alguma coisa.
meu corpo fica exausto de tanta ausência. não tenho forças de transformar pessoas novas em presenças. eu queria deitar no divã do meu analista - que também morreu - e ficar quietinha, sem dizer nada, em silêncio, algumas horas. mas nem existe mais a sala dele. e nenhum resquício daquela vida.
eu não quero me organizar para tomar café numa quinta-feira às 18h, porque isso envolve desmarcar analisantes, me arrumar de forma diferente, tirar o carro, procurar um lugar pra estacionar - cada dia mais difícil nessa cidade - e rir de coisas que eu não acho a menor graça. e falar da vida alheia. e tem tantas memória berrando dentro do meu peito que chegam a transbordar. e aí eu não consigo, porque elas se transformam em ansiedade. eu quero chorar e também não consigo. então tomo água e, com sorte, um Rivotril.
Guimarães Rosa disse: “sofre depressa que é para as alegrias novas poderem vir”. eu até queria, mas não consegui tomar fôlego ainda. os lutos estão sobrepostos. e é cansativo me ouvir falar sobre isso, porque não é como se eu estivesse cronicamente triste. eu dou risada, faço piadas e tenho interesses mais limitados. celebridades não me interessam. fofocas de gente que eu mal conheço, também não. me interessam as lembranças, o que faz o coração saltar à boca, o que emociona, o que fode, o que transborda. me interessa o que desconcerta. o que se apresenta tão quebrado quanto eu. me interessa a poesia do improviso do dia a dia. o caos. a rachadura, que se funde à minha.
dia desses, a abigayl Campos Leal fez um post dizendo “eu escolhi ser feliz” e me pegou bastante. eu já vivo ligada na arte dela e em toda possibilidade de aprender com ela, lá estou: atenta. no texto, ela diz sobre nunca escolher a dor e a disgraça. e eu penso que é isso. a gente não escolhe. mas às vezes dói demais. e a binariedade exigida entre estar feliz e/ou triste é exaustiva pra caramba. eu posso estar enlutada e alegre, não?
ali, ela fala do pacto firmado com ela mesma, de cultivar a própria felicidade. a mim, faz total sentido. o cultivo é lento, gradativo, diário. hoje, fui à chácara e colhi abacates e bananas. foi meu pai que plantou. fiquei feliz em celebrá-lo assim. pensei nesse pacto e em como estar ali e não numa performance qualquer de felicidade para agradar quem não é capaz de lidar com meus buracos é reafirmar esse pacto. dá trabalho, mas é plantio. cultivo. e colheita.
ainda no texto, bibi diz: “essa é uma forma mais linda e complexa que encontrei de permanecer viva”. eu quero permanecer viva. mesmo sabendo que nunca mais estarei inteira novamente. mesmo sabendo que estou, desde que existo no mundo, quebrada, remendada e esburacada. quero ser feliz assim, com o espantalho que me tornei. nesse pacto comigo mesma. quero sorrir enquanto penso no inventário. quero celebrar enquanto pago boletos. quero escolher onde quero estar. e só pode ser onde eu caiba.
por isso, investigar o corpo como memória é uma obsessão. assim como escrever nesse jorro, como está essa newsletter hoje. vem, comigo, olhar pra trás e planejar novos futuros?
se liga na boa dica: use o cupom balbilovers
📚📢 fora do hype
Febre de Carnaval, o calor latino que é ser menina-mulher
Antes de fevereiro, já é Carnaval em Esmeraldas, as pessoas se molham em cima das casas, nas calçadas, nas salas e nos quartos. Minhas manas se molham umas às outras de surpresa. Se uma delas lava a louça de costas enquanto canta uma salsa da moda ou músicas de Mari Trini, a outra chega com um balde de água recém-colhida da caixa d’água e a molha. Joga o balde d’água no cabelo e começa a correr. As pessoas do bairro se molham nas calçadas, dançando com força, sacudindo a bunda e os quadris como se eles dominassem o caminho da vida, como se as bundas e quadris suportassem o mundo. Ou será que de fato os quadris e as bundas sustentam esse mundo esmeraldenho de salsa, loucura e delírio carnavalesco? Não sei que porra está acontecendo no corpo das pessoas no bairro, na praia e na cidade. Também não sei que porra está acontecendo no meu corpinho que esquenta e esquenta; meu corpo que vai inflando e remexendo, como uma bolha de muco que escapa na risada da criança do outro lado da rua principal, cuja família nunca o lava. Meu corpo começa a ferver por conta própria, a se bicar quando chega janeiro e as pessoas na república independente do sabor se declaram em autonomia carnavalesca sem que ninguém dê a mínima para o calendário. Dona Sabrosura, uma senhora idosa, mas jovem, foi quem disse uma vez isso de república independente. Uma mulher tão velha, mas tão sensual e alegre que parece mais nova do que as manas.
Esse é um dos muitos trechos do livro “Febre de Carnaval” (editora Bazar do Tempo) da Yuliana Ortiz Ruano que está marcado no meu livro. Ele está praticamente todo marcado. Assim que ouvi o título do livro, numa palestra que vi da Luciany Aparecida, fiquei obcecada. Sim, é parte das minhas obsessões por palavras. Lembrei do meu poema, febre latina (vou postar ali embaixo) e também de como essa palavra, febre, mexe comigo. E como a latinidade esquecida é preciso ser resgatada todos os dias por aqui. E de como somos violadas. E de como eu preciso ler mais autoras latinas. E de como nenhuma indicação da Luciany me decepciona.
Traduzido por Larissa Bontempi, o livro conta a história de Ainhoa, uma garota que vai descobrindo a vida em meio a uma família numerosa, o corpo que vai crescendo - e sendo abusado - e o silenciamento que sua família é obrigada a enfrentar, sobretudo as mulheres.
A trama se passa na província de Esmeraldas, banhada pelo Pacífico e coração da cultura negra do Equador, onde a jovem Ainhoa é forçada a amadurecer rapidamente, cercada por segredos familiares e pela violência que permeia a sua casa e a comunidade local.
Contudo, o luto e o carnaval, mistura o trágico e o festivo e é o pano de fundo da narrativa que mergulha no universo exuberante e sensível de Ainhoa, cujo corpo de menina reverbera as histórias do clã de mulheres que a criaram – irmãs, mães e avós, que compartilham com ela, mesmo sem saber, suas dores, seus medos e seus desejos.
A literatura é cercada de ritmo, de tempo espiralar, de corpo e palavra em movimento e memória. É quase possível ouvir os ritmos de salsa, rumba e jazz na obra da equatoriana, mas é também palpável o silêncio. Ou os muitos silêncios. E os estampidos da festa do corpo que o Carnaval permite. Bem como a poesia, tão frequente na boca da menina que gosta de subir em pés de goiaba e comê-las, mesmo bichadas e que não gosta que lhe toquem o corpo, que planta os cabelos arrancados na violência dos penteados, que sonha com um mundo em que o patriarcado esteja suplantado pelos corpos quebrantes - e não só quebrados - das ruas. Ela quer dançar e perguntar.
Tendo a pensar que o livro é uma chave para o escape dos nossos próprios silêncios. Do que guardamos corpo adentro e “esquecemos” de gritar. Do que fingimos não ver. Do que cola e não sai do corpo. Que nos obriga a esfregar, pegar, refestelar. É um livro-linguagem-corpo-dança-uma-coisa-só-que-se-funde-dentro-do-nosso-desaguar. É um diálogo ancestral, latino, quente.
Gosto demais da perspectiva de uma narradora criança, quase mocinha, quase jovem, que está vendo o mundo pela primeira vez. Toda violência - assim como toda beleza - ficam mais espessas, fortes, intensas.
Saí do livro completamente contaminada, com a mesma febre. Com o mesmo desejo de vida. Com a mesma chama incendiária que trago no “gasolina & fósforo”. Com a mesma urgência em me conectar com Yuliana. Com outras autoras. Com minhas mais antigas. Com as que já não estão aqui, mas foram enterradas com tanto a dizer. O livro é tecnolgia ancestral. Se conecta, vai.
febre latina
em pleno alvoroço que festeja o fogo
buscamos, da poltrona número 38,
toda nossa latinidade esquecida emergency tacos y cachaça
desejo e pulsão se contrapõem
já eu, eu descanso no perigo
a passos lentos e gostosos
caminho e saboreio a borda
com o limite, o limite cada vez
mais perto, cada vez mais rente aqui
um tabuleiro onde movimentamos
objetos, quadris e febres de 42 graus
e nossos corpos, ah os nossos corpos
do outro lado da tarde, maçãs e águaa visceralidade de um vulcão que acorda
depois de milhares, milhares de anos dormente
pura tecnologia de amor y guerra
___Jéssica Balbino
Fortalece?
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"Por qual palavra seu corpo é obcecado?" Eu ia responder "cansaço", e você começou falando em exaustão. Você é uma daquelas pessoas que eu queria ter como amiga, mas que provavelmente nunca vou alcançar. Hoje acordei com o coração apertado lembrando de todas as pessoas que me odiaram na escola (faz tempo). Por quê? Vivi lutos intensos do ano passado pra cá, e, quando eu estava me curando, veio como uma avalanche o luto por quem eu era antes de, 10 anos atrás, sofrer um colapso mental do qual nunca me recuperei. Agora em dezembro faz exatamente 10 anos. E já está na hora de eu abrir mão da esperança de voltar a ser quem eu era e começar a descobrir esperanças em quem eu me tornei. Também não quero sair pra um café (ou pra uma Coca-Cola, nesse calor). Mas também não queria ficar em casa olhando pras bagunças externas e internas que eu não consigo arrumar. O que me faria feliz hoje?