Minha amiga tá com câncer e eu não sei sequer qual é o meu tipo sanguíneo com quase 40 anos
Ainda o burnout, as conversas urgentes e qual é a nossa lista de desejos caso a morte ronde a nossa porta?
Quais as formas para matar a culpa e salvar o desejo?
para ler ouvindo 📚 🎧
Na sexta-feira, descobri que minha amiga tem câncer. Assim, num dia comum. Que eu tava pintando as unhas de vermelho e tinha programado fazer uma massagem e tomar um vinho com um amigo pra fofocar sobre a vida.
Receber uma notícia assim, mesmo já tendo quase 40 anos e tendo enfrentado algumas perdas é sempre um baque. Normalmente, me sinto suspensa. Como se estivesse caindo numa espiral, cujo fundo desconheço.
Minha primeira reação foi de revolta. Como pode minha amiga ter câncer e o ex-presidente genocida estar vivo e vendendo joias roubadas na República por aí de forma ilegal? Mas, assim como eu, você já deve saber que a vida é injusta.
Automaticamente, tentei ser prática: desmarquei o que tinha agendado e quis ficar com ela. No caminho, fiquei pensando em como eu reagiria. E não dá para saber. O que sei é que vamos fazer isso juntas. Não imagino, aliás, outra forma.
Vinho vai, conversa vem, ela soltou: agora vou dizer o que penso, eu tô com câncer. O que me coloca a pensar que somente conseguimos fazer isso em situações limítrofes e como precisamos de uma rachadura imensa para conseguir reagir. Eu mesma, por muito tempo, usei o argumento: "eu posso, meu analista morreu", para justificar minha necessidade de acolhimento.
Essa ruptura me fez perguntar pra essa amiga sobre quais desejos ela gostaria de realizar, tal qual na série "As garotas do fundão" ( Netflix), cujo título adolescente não faz jus à grandiosidade do que ela passa, pensei que podemos fazer nossa lista específica e, dali, realizarmos o que gostaríamos.
A pergunta me trouxe o mesmo questionamento: qual seria a minha lista de desejos?
Mais do que isso. Lembrei que tive um burnout (na verdade, é um movimento que eu acho que já vem há muitos anos e transbordou há alguns meses) e que isso me fez pensar na qualidade do tempo, das relações e na maneira como lidamos com o desejo. Não só isso, claro. São muitos anos de psicanálise, divã, entre outras coisas que promovem autoconhecimento.
Mas, estar ali, cara a cara com uma doença como o câncer que afeta uma pessoa de 40 anos, saudável e que só deseja viver a vida da melhor forma me faz questionar um sem número de escolhas diárias que faço, inclusive meus lamentos, minhas crônicas e as coisas sobre as quais opto por escrever. Me faz sentir menos peso por decidido ficar muito louca numa quarta-feira, como contei aqui e me fez encarar a bandeira com a frase: matar a culpa salvar o desejo de outras formas. Entre as quais: gostaria de viver mais nesse limite: o que vamos perder que já não estamos perdendo?
Em algum momento, vejo as horas iguais no visor do celular - dizem que traz sorte e é possível fazer um pedido - levanto minha taça e peço saúde enquanto penso: quando é que envelheci tanto assim e parei de pedir um grande amor ou a viagem dos meus sonhos e comecei a me agarrar àquilo que nos ameaça cotidianamente: a saúde.
Não gosto dessa palavra e do que ela representa. A mim, ela ameaça. Tentam eliminar meu corpo corpo dizendo que eu preciso ter saúde. E eu persigo isso insanamente para me esquivar da violência cotidiana. Não adianta muito. Eu tenho saúde, minha amiga tá com câncer e eu sequer sei qual é meu tipo sanguíneo.
Como pode alguém chegar nos 38 anos sem saber qual o próprio tipo sanguíneo? É um absurdo. Não tanto quanto o roteirista da minha vida, que não tem o menor respeito com o tempo ou com a saúde.
Na semana passada, um garoto de 13 anos foi morto por uma bala disparada pela PM. Uma garota de 5 anos, que brincava no sofá, também foi alvejada por uma bala disparada pela polícia. Ninguém diz nada e eu acrescento, na minha lista de desejos, incendiar o país de qualquer maneira. Me pergunto: essas crianças tinham saúde?
Quando eu tinha 9 anos, enterrei uma amiga de 7, que morreu atropelada. Ela tinha saúde. Assim como os traficantes da biqueira aqui perto de casa, os crossfiteiros no meu Instagram que malham enquanto eu durmo e o ex-presidente.
A morte, o câncer e a certeza de que nunca viverei um amor romântico chegam assim: gosto amargo na boca, antidepressivo que não dá conta, eu errando o dia da psiquiatra e me demitindo de todos os projetos que estou envolvida para não enlouquecer e tentar, de algum jeito, aproveitar o tempo que me resta.
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Sobre a saúde, ando alérgica e estafada. Penso que um colapso seria bem-vindo. Mas, sigo aqui. Enquanto não consigo beber, receber uma massagem e, penso, às 22h22, que se desse para comprar saúde, venderia o que ainda tenho para ter mais. Faz sentido? Nenhum!
Essa semana entendi que é impossível. Meu delírio de onipotência derreteu e foi tragado ralo abaixo. Senti o alívio da pressão que eu mesma estava fazendo no meu peito e não sei como vou pagar as contas no próximo mês - e sério. Me ajuda com um pix? um trabalho que não me machuque física e mentalmente? Obrigada!
Minha urgência é fazer uma lista de desejos com minha amiga. O melhor que der. Matar a culpa e salvar o desejo. Todos os dias, porque é um movimento. E enquanto houver horas iguais no relógio e eu puder, misticamente, achar que esse é um sinal de mais saúde pra gente, vou seguir desejando.
Afinal, saúde e ter amigas. E amigas que enfrentam isso lado a lado. E também marcam um dia para o chá revelação do meu tipo sanguíneo. Aguardem.
🌮🌶️🌵 EMERGENCY TALKS - ou Conversas Urgentes
Lancei a newsletter - e tô muito feliz com os leitores alcançados, os comentários recebidos, as pessoas que se divertiram com o que narrei e com o fato de que a crônica não morrerá, ao menos não para mim.
Mas, explicando o título. A expressão deriva do livro de poemas “Emergency Tacos”, uma antologia que traz a escritora chicana Sandra Cisneros (uma das minhas favoritas e quem já leu/recebeu o gasolina & fósforo ou me acompanha há mais tempo sabe disso). O nome do livro refere-se aos tacos, comida mexicana que é bastante comum nos EUA também, sobretudo em Chicago, onde ela vivia e também às urgências de escrever, de criar histórias, ainda mais em condições adversas, como falta de tempo, falta de um local adequado e silencioso para escrever e de tacos - comida.
Muitas vezes estas foram - e são as condições que tenho para a escrita. Como essa é uma newsletter recente, vou contado por aqui sobre as condições nada favoráveis que muitas vezes me pego escrevendo. Mas, ainda que não seja o que idealizam para uma escritora, eu sigo contando minhas histórias e tentando transformar o mundo num lugar mais palatável a partir delas.
Ao ler a expressão, fiquei curiosa com o livro e busquei um exemplar. E fiquei pensando em qual seria minha urgência para perceber, rapidamente, que são essas conversas. Esses assuntos que trago aqui. Que precisam ser ditos, elaborados, que só a coletividade da divisão do pensamento será possível.
É também um jeito de brincar com a nossa latinidade. De dizer sobre nosso viralatismo. Sobre como usamos expressões em inglês que já existem em português e para convidar quem está por aqui a espalhar essas palavras e urgências. E, caso queiram me convidar para um taco, que eu amo, também aceito. Eles também são urgentes.
AS GAROTAS DO FUNDÃO
Assisti essa série recentemente, na Netflix. (não é publi, mas se quiser, manda e-mail). Tinha preconceito com o título, mas me dei essa chance quando descobri se tratar de uma produção espanhola e quando vi que havia uma atriz gorda num dos papéis - isso é importante para mim, representatividade, vou falar bastante por aqui. A série tem apenas seis capítulos e conta a história de um grupo de cinco amigas que sai em viagem de férias juntas para realizar uma série de últimos desejos malucos depois que uma delas descobre que está com câncer. Passamos a série inteira sem saber quem é a personagem que vai ter que operar e entre os flashbacks e momentos divertidíssimos, vemos como a sororidade é construída num grupo tão diverso.
Eu, que amo viajar com as amigas, já quero essa lista e bora enfrentar esse câncer juntas, se possível realizando desejos impensáveis.
📚📢 fora do hype
de tanto me deixar levar fiquei à deriva
O livro da Brisa de Souza foi feito, calculado, milimetricamente para caber numa bolsa pequena, mas engana-se quem pensa que trata-se de um livreto. Como fazer caber a imensidão do furacão que essa mulher abriga?
Tenho a mais absoluta honra de falar desse livro, que assim como uma parte do que é feito, é incabível. Saiu pelo selo doburro (minha casa editorial também).
Brisa brinca com as palavras, desliza por elas como quem desliza no significante e encontra sentidos para o vazio que é inerente aos seres humanos.
É uma obra de uma vida inteira, que foi gestada por 30 anos, guarda a criança caiçara Brisa, paratiense e sonhadora. Guarda a ferocidade da mulher feita de raio, fogo e justiça. Guarda um tanto do que desejamos ser, enfeitados de glitter e urgência.
Guarda uma promessa que fizemos uma a outra, numa segunda-feira de manhã, na ressaca da Flip: ano que vem vamos por nossos livros no mundo. Deu certo. Colocamos. Nos cobramos. Nos acordamos para que era urgente jogar nossas obras por aí.
Ainda não sabemos - na verdade, fingimos não saber, para que nos convençam - se deu certo, mas, quero dizer que sim. O livro de Brisa é um sucesso. Mas só dá para saber quando a gente se permite passear por ele.
Como eu digo no texto-diálogo que fiz para o livro, Brisa é única. Fala do mundo enquanto fala de si, com uma curiosidade ímpar que só faz dela uma pessoa ainda mais gostosa de se compartilhar a vida - e tantos sonhos.
Brisa e filha, neta, irmã, mãe de pet e de planta. A melhor produtora cultural que você vai conhecer (acho que já falei isso, mas, produz minha vida?!), a pessoa que senta no chão da cozinha pra se stalkear e entender que é mesmo interessante. A mistura de muita coisa explosiva e marcante.
Apaixonada pela literatura, por café, por bebidas fortes e sabores únicos, Brisa dá uma pista de quem pode ser. E chega assim, feito barco à deriva e se instala em tempestades que também são únicas.
É seu jeito de ser. Intensa, como a vida é as coisas que realmente importam devem ser.
Na escrita e na vida - nas baladas, nos dias pandêmicos, no trabalho, nas missões de matar alguém e esconder o corpo - impossível cruzar seu caminho e sair de forma ilesa. Que bom!
Aqui deixo o convite para a prosa poética que compõe o livro, enquanto ela nos lembra: "tudo parece primordial, como se o mundo fosse acabar amanhã e não acaba". Ler a Brisa é primordial.
E quem quiser comprar o livro, dá um salve nela, aqui ó https://www.instagram.com/brisadesouza_/
🎧 nos falantes
Eita que você chegou até aqui! Então bora de indicação sonora.
Hoje quero indicar minha amiga querida, a Tine Taga, que é uma super cantora de Poços de Caldas (MG) e que há algum tempo lançou o disco "Tuas Cores" com o Dons Maria, em que traz clássicos como "Travestida", "Ditadura" e a que dá título ao álbum, Sou suspeita, porque é um som que poderia ser classificado como 'nova MPB' e que tá sempre nas minhas playlists e no dia a dia.
Aperta o play e vem comigo!
Por hoje é só! Essas são minhas urgências da semana e eu espero que vocês tenham curtido! Por aqui, vou testando os melhores dias para enviar, para ler, etc.
Vai me contando também!