Você já tomou cerveja com homens que gostariam de montar em você e rir disso depois num grupo de e-mail?
Intelectuais, escritores, editores, bons pais, bons maridos, bons filhos, homens divertidos e gentis que, quando ninguém está olhando desejam subir em mulheres como eu, gordas, e acham isso divertido
pra ler ouvindo 📚
Você já? Já tomou uma cerveja com alguém que elogia sua mediação em uma mesa mas que, no escurinho do próprio desejo, adoraria te laçar, montar em você e ficar ali por 8 segundos até ser derrubado, referindo-se a você apenas como “gorda”, sem o mulher na frente, afinal, é tudo que você é (na cabecinha podre desse intelectual). Já teve suas crônicas elogiadas num festival literário após encontrar um outro intelectual, desse mesmo, que se te pudesse, laçava ali em Paraty, em meio às pedras e montava como se você fosse um animal dos usados em rodeio - o que já é de uma atrocidade absurda, vamos deixar combinado aqui.
Você já leu escritores e suas elogiadíssimas obras, que se encontraram contigo enquanto você apenas fazia o seu trabalho, trocou algumas palavras e não imaginou que, num passado não tão longe assim, ele estava num grupo de e-mails fazendo troça de pessoas como você: gordas!
A decepção é grande. A surpresa inexiste. E o que incomoda é o silêncio. Em meio à troca infinita de farpas e textões intermináveis - eu aqui, fazendo mais um - o que dói mesmo é que a informação de que 15 homens tratados como meninos (ouvir o podcast “CPF na nota” na Rádio Novelo e pesquisar seus desdobramentos até aqui) e suas conversas de vestiário me veem e me enxergam como alguém que pode ser laçada e montada. Meu corpo, intelectual, representa isso para eles. Não interessam os livros que li, escrevi, as colunas, as reportagens premiadas, as mesas memoráveis mediadas. Interessa que sou um corpo risível. Desumanizado. Que é “engraçado” pensar que universitário em 2010 fizeram um rodeio de gordas.
Demorei a vir falar sobre. Como sempre, tô fora do hype. Mas estou, há mais de uma semana indigesta com uma informação no marcante episódio “CPF na Nota” na Rádio Novelo, que furou a bolha da literatura e da considerada intelectualidade brasileira. A porra do rodeio das gordas e de como estes homens cordiais, bons maridos, bons pais, bons escritores, bacanérrimos de rolês literários gostariam de montar em pessoas cujos corpos são como o meu e se divertirem com isso.
Vão argumentar: mas isso foi no passado. Eles eram “jovens de 30 anos” que no alto de seus privilégios, não tinham acesso a essas discussões e que veja bem, não é gordofobia, mas uma piadoca entre amigos, quem nunca, não é mesmo? E esse negócio de gordofobia nem existe. É muito mais uma questão de saúde. Eles mesmo, só namoram e escolhem mulheres magras para se relacionarem. Muito progressistas. Boné do MST, livros sobre pessoas gordas em seus catálogos, afirmam ler minhas colunas. Mas, no fundo, lá naquele íntimo lodoso, sentem aquele misto de desejo e raiva. De nojo. De vontade de montar em mim. Como se eu fosse um animal de rodeio.
Não consigo me desvencilhar da imagem de cada encontro que tive com cada um dos mencionados no tal e-mail vazado. Nem da edição do podcast da Rádio Novelo que insistiu em tirar a passagem do rodeio das gordas, por estar “descontextualizada”. Discutir o mínimo de humanidade às pessoas gordas não é pauta. Imagina se um grande e bem financiado podcast vai se dignar a olhar pra isso e considerar. Foi preciso que a autora batesse o pé. E insistisse. A gordofobia, no grupinho de jovens homens de 30 anos era imensa e repugnante, como ela contou. Dado isso, a informação realmente passou batida.
Não li ou vi algo sobre - à exceção do belíssimo texto da minha amiga Ana Squilant com o texto “No país do agro, um progressista poderia me montar num rodeio” e nem a de todos os textos de repúdio, de apoio, de afeto, de curiosidade com a vida alheia. Nenhum. Nem unzinho. Nada. Nenhuma palavra sobre o tal rodeio. Sobre a gordofobia. Não só pessoas gordas são “cidadãs” de segunda classe, como a pauta sequer merece destaque, ou escuta, ou leitura.
Ninguém está nem aí. Se todos os panos estiveram a postos para serem passados a homens que fizeram sua mea culpa - mas não disseram uma única palavra sobre debochar de universitárias gordas que foram laçadas e montadas na Unesp - tivessem olhado para essa questão, como seria? Passariam um pano duplo? Ou reconheceriam que aí tem uma opressão que faz com que centenas de pessoas morram anualmente vítimas de gordofobia?!
O nó na minha garganta e a minha dor de estômago tem nome: gordofobia. E não me surpreende que ela venha diretamente de homens que me elogiam afetuosamente quando me encontram. Só me entristece. E não, não acho que estes homens devem ser cancelados, ou que não devem mais ser lidos, ou que pedras devem ser jogadas em quem quer que seja. Acho sim, importantíssimo falar sobre. E, mais importante que falar: ouvir.
Ao pesquisar sobre o caso da Unesp, que vivi à época com muito ódio e repúdio, esbarrei numa notícia do G1 (casa que já atuei) e tem uma nota com “universitários suspeitos de criar rodeio das gordas são ouvidos”. Veja bem. Homens que desumanizaram mulheres gordas são ouvidos. Nós, seguimos silenciadas o tempo todo. Quando dizemos sobre qualquer coisa e, principalmente, quando escancaramos atos de violência - especialmente a psicológica e aquela que é invisível, que não é lida como violência.
Da minha parte, seguirei escrevendo, frequentando eventos literários e me arrependendo do dia que eu disse que a gordofobia não era tão presente neste universo, porque o que importava era a intelectualidade. Fui tola e ingênua. Como muitas outras vezes. Como quando também me deixei levar na posição de vítima de uma relação abusiva e que me deixou um trama - feito uma cicatriz, sim - e terminou com muita exposição, justiçamento, cancelamento, tempo e dinheiro perdidos. Achei que tivéssemos superado o #nãopoetizeomachismo de 2015 e que sororidade fosse mais do que um conceito, uma prática.
Muita gente se sensibilizou com meu texto sobre a série Bebê Rena. Pouca gente se sensibilizou com o fato de que figurões do meio editorial gostaria de montar em mulheres como eu.
Todo dia eu me engano. Todo dia eu quero ser menos ingênua. Agora, serei mais cabreira. Tomarei cerveja com estes mesmos homens. Falarei mal de políticos de direita. Direi: que situação triste a da palestina, a nossa, como América Latina. Que deplorável que é termos um país de não leitores, não é mesmo? Quem sabe um dia, te mando um original, sabendo que não mandarei. E, sabendo, sobretudo, que, no íntimo, este cara bacanérrimo, celebradíssimo, engraçado, deseja me laçar, montar em mim, dar risada e narrar isso num grupo de homens, seja num vestiário, seja num bar, seja num encontrinho em casa, seja num grupo de e-mail, num livro lido às quintas-feiras, num grupo de mensagens instantâneas ou seja lá qual modernidade vai substituir isso. Eu saberei.
E saberei também que ninguém liga. Nenhuma mulher: das que se compadecem da dor da ex-esposa às que saem em defesa da atual esposa, nenhuma delas sequer se deu conta de que eles odeiam mulheres, sobretudo, mulheres gordas. Da minha parte, estou cansada de escrever sobre. E de ter que lutar pra existir. Achava, sinceramente, que já tínhamos superado isso. E que tínhamos aliados. Mas não. Dito isso, você pode ler minhas colunas sobre o tema aqui.
Oficinuda 👩🏽💻
Reclamações feitas, vou lançar esse quadro aqui, porque eu tô muito oficinuda em 2025 e é preciso espaço para organizar e divulgá-las!
Escrever o Corpo no
Instituto Caminhos da Palavra
Laroyê! Que honra a minha abrir o ciclo de oficinas no Instituto Caminhos da Palavra, recém-lançado pelo Henrique Rodrigues, também curador e idealizador do Prêmio Caminhos.
O que me deixa feliz é que neste encontro temos nomes como Aline Bei, Cintia Moscovich, Julian Fuks, André Vianco, Luna Vitrolira, entre outros. E, sim, eu tô nessa curadoria. Achei chique. Não vou fingir costume não. Muito menos aqui.
E, pra você , que me lê e quer fazer o curso, consegui um DESCONTO DE R$ 200 nesse primeiro! É só me mandar um e-mail no falajessicabalbino@gmail.com que a gente desenrola. Imperdível, fala aí.
Para saber mais da ementa, vem aqui!
Roda de conversa: A Gorda
Em 2019, conheci a Néli Simioni, do Meu Corpo Sou Eu durante um bate-papo no CPF Sesc sobre o livro “A Gorda” da escritora portuguesa Isabela Figueiredo, publicado no Brasil pela editora Todavia.
Desde então, nos tornamos amigas e essa leitura nos acompanha e, vez ou outra, volta para o nosso debate, sobretudo sobre afetos e rejeição dos corpos gordos nas relações. Pensando nisso, nos unimos para fazer essa roda de conversa sobre o livro.
Vem participar com a gente? Tá no precinho, temos bolsas, etc. É só clicar no nosso link, vir conhecer e participar desse debate que tem tudo a ver com o texto dessa semana da newsletter e essa desumanização dos corpos gordos.
Vamos falar sobre?
LAB DELÍRIO 🔥
"Como os festivais, os levantes não podem acontecer todos os dias - ou não seriam 'extraordinários'. Mas tais momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida" [Hakim Bey]
Esse espaço foi feito pensando em você e em todas as pessoas que desejam criar, se conectar e experimentar a escrita em um ambiente acolhedor, diverso e repleto de possibilidades. No Lab Delírio, a proposta é reunir mentes inquietas, apaixonadas pela prática da escrita em diferentes formatos e gêneros, que busquem explorar novas perspectivas, romper padrões e mergulhar em formas criativas – e sim, delirantes – de compartilhar suas ideias.
O nome Lab Delírio reflete a ousadia de imaginar e construir uma zona autônoma temporária (um abraço ao conceito de Hakim Bey), onde hackeamos os espaços digitais para dar vida a uma pequena sociedade independente. Aqui, liberdade, autonomia e delírio se unem para criar um lugar único, onde escrever se torna um ato coletivo, poderoso e transformador.
Nosso convite é para trabalhar seu projeto editorial em um espaço de trocas reais, com atividades cuidadosamente pensadas para ampliar seus horizontes criativos. Escrever e criar não precisam ser processos solitários – no Lab Delírio, acreditamos no poder da partilha.
Como funciona?
Serão três encontros semanais, cada um com duas horas de duração. Durante os encontros, vamos explorar:
Leituras e debates: Textos enviados previamente serão discutidos em grupo, promovendo reflexões profundas e trocas enriquecedoras.
Exercícios de escrita criativa: Atividades práticas que estimulam a criação em diferentes gêneros literários, desafiando você a explorar novas possibilidades.
Partilha e escuta: Um ambiente seguro e inspirador para que você compartilhe suas produções, receba feedback e se conecte com outras pessoas que amam criar.
📚📢 fora do hype
Não me serve de nada essa newsletter se não for também para exaltar os amigos. E hoje é dia de falar dele, Rafael Zincone. Vim indicar o “Tropicália em tela: política e desbunde na TV”, que é recém-lançado e vale muito a leitura.
Na obra, que teve origem na pesquisa de mestrado do Rafa, ele entrega uma análise muito vibrante do impacto cultural e político da Tropicália na TV Brasileira. E não tinha um momento melhor para isso: em meio ao burburinho do Globo de Ouro e indicação ao Oscar, do filme “Ainda Estou Aqui”, inspirado no livro de mesmo nome do Marcelo Rubens Paiva (um dia, farei uma newsletter para falar apenas disso, socorro, aguardem!).
O diálogo estabelecido entre o turbilhão criativo dos artistas da década de 1960 e 70 e o momento de agora é não apenas urgente, como necessário. No livro, o autor mostra como a Tropicália não se limitou à música e às artes visuais, mas também encontrou na TV um veículo de contestação e inovação.
E o que não é a vida senão encontrar brechas para fazermos algo de útil, criativo e belo em meio às impossibilidades?! Nesta pesquisa, Rafael Zincone traça um panorama detalhado da inserção do tropicalismo no meio televisivo, um espaço dominado por convenções e censura, mas que serviu como palco para a ousadia estética e ideológica de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Zincone explora como programas emblemáticos – como o Divino, Maravilhoso – tornaram-se trincheiras de experimentação, misturando música, teatro e política, ao mesmo tempo que provocavam os limites impostos pela ditadura militar.
Com uma escrita fartamente documentada, o autor articula os diálogos entre o desbunde tropicalista e os bastidores da TV, revelando como os artistas lidavam com as tensões entre criação e repressão. Ele também não deixa de abordar as contradições desse movimento, que, ao mesmo tempo que desafiava o status quo, era exibido em um veículo comercial amplamente controlado.
A narrativa ganha força ao relacionar o tropicalismo com o contexto político da época, apontando como o "desbunde" não era apenas estético, mas uma postura crítica contra a rigidez moral e a opressão autoritária. Ao abordar o impacto da Tropicália na TV, Rafa amplia nosso entendimento sobre a força das linguagens artísticas como resistência em tempos de silenciamento.
Tropicária: Política e Desbunde na TV é leitura indispensável para quem deseja compreender não só a Tropicália, mas também o papel da televisão como arena cultural. É um convite a revisitar uma era que transformou para sempre a relação entre arte, política e mídia no Brasil. Zincone nos lembra que, mesmo em tempos sombrios, a criatividade é uma forma poderosa de resistência.
Mas não para por aí. Dia desses gravamos um episódio do podcast #Rabiscos com o Rafa e teve até plateia. Ficou delicioso (tô sem modéstia, juro!). Vem ouvir com a gente e depois me conta o que achou, vai!
Isso me deixou amargo na boca porque eu lembro que um dos citados no e-mail tinha um tumblr chamado “FUCK YEAH - Gostosa que se acha gorda” com fotos de mulheres gordas “padrão”, muito acinturadas, peitao, bundao. O fetichismo e a “gorda aceitável”. Uma eu homenageio, a outra eu monto em cima. Mais uma espécie de crueldade na gordofobia e na misoginia, servidos frios. Nojo.
Eu ouvi o podcast e a parte sobre a violência contra as meninas da universidade foi algo que me deixou bastante triste. Li seu texto. Ele é potente e não me deixará esquecer sobre a gordofobia, principalmente em relação às mulheres, que, de novo, são alvo todo dia de alguma coisa vive nessa insistência absurda de nos machucar.